Técnica, ainda inédita no Brasil, possibilitou a descoberta da organização molecular dentro da célula – o alvo foi a glutaminase, fundamental no ciclo de produção de energia pela mitocôndria, na produção de biomassa e relacionada a alguns tipos de câncer
A descoberta de que a glutaminase forma uma estrutura quinária em filamentos (elongações em formato de “palito”) dentro das mitocôndrias, o que é chamado in situ, e não apenas quando a proteína é isolada de seu meio para estudo (in vitro) pode mudar o rumo de diversas pesquisas. Esta é a primeira vez que uma enzima metabólica tem sua estrutura revelada dentro do ambiente celular.
Integrantes do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) foram responsáveis pelo artigo publicado na revista de alto impacto Nature Structural & Molecular Biology em colaboração com pesquisadores do Instituto de Física da USP de São Carlos, da Unicamp e do European Molecular Biology Laboratory . O estudo utilizou, entre outras, a técnica de Cryo-ET (Cryo-electron tomography) que está na fronteira do conhecimento científico atualmente, além de ter demonstrado algumas das funções dos filamentos dessas proteínas, como tornar a mitocôndria mais comprida e mais resistente à degradação da reciclagem feita pela célula.
A coordenadora do trabalho, Sandra Dias, e o autor do artigo, Douglas Adamoski, ambos pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do CNPEM, explicam que a elucidação de estruturas moleculares in situ (dentro do ambiente celular) vai facilitar a compreensão de como as proteínas interagem entre si na célula e em quais momentos e situações fisiológicas isso acontece.
Além disso, o estudo colabora na compreensão de mecanismos de doenças e abre portas para que o desenvolvimento de fármacos ocorra de maneira mais precisa e contextualizada. “A proposta deste tipo de técnica é fechar a ponte entre a biologia estrutural e a biologia celular, mostrando a estrutura das moléculas no seu local real de ocorrência biológica”, diz Adamoski.
A mitocôndria é responsável pela produção de energia usada em todas as funções do corpo animal – cada movimento muscular, cada piscar de olhos, cada raciocínio transmitido pelo sistema nervoso- e, inclusive, para a manutenção da própria célula. Para desencadear o ciclo de reações químicas da mitocôndria, diversas moléculas são “queimadas”; glicose e glutamina são os principais “combustíveis”, especialmente em células que se dividem constantemente.
A glutaminase, há anos objeto de estudo no CNPEM, é a enzima que quebra a glutamina, um aminoácido, em glutamato, outro aminoácido. Em achados anteriores, o grupo evidenciou como esse mecanismo está desregulado em diversos tipos de células tumorais. A nova pesquisa joga luz na direção do que pode ser um novo ramo de investigações sobre a fisiologia dessa organela fundamental e de possíveis impactos em doenças neurológicas e cancerosas.
Segundo Dias, há outros grupos de pesquisadores que estão agora também se movendo para resolver estruturas moleculares de proteínas dentro da própria célula. “Até então, para poder definir estrutura de uma proteína, muito frequentemente, a gente tinha que pegar a sequência do gene, colocar em uma bactéria, fazer essa proteína em grandes quantidades, e estudar ela isolada do seu sistema. A gente tem feito isso com glutaminase há muito tempo, e foi fazendo isso que observamos que ela formava essas estruturas estranhas, compridas, esses polímeros, o que foi inusitado”, conta a pesquisadora, que explica que o uso da tecnologia avançada foi imprescindível para poder provar para a comunidade científica que os filamentos estão também dentro da mitocôndria, dentro da célula, e que têm uma função para além da conhecida da enzima.
Para alcançar os resultados, diversas técnicas foram necessárias. Os pesquisadores utilizaram a criomicroscopia eletrônica (Cryo-EM) para o estudo da proteína purificada in vitro, utilizando um equipamento de última geração, o Titan Krios. “É importante ressaltar que o Krios é um microscópio eletrônico singular, e que o CNPEM disponibiliza para uso de toda comunidade acadêmica”, afirma Dias. O Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), que opera a instalação, é pioneiro na elucidação de estrutura de proteínas por Cryo-EM na América Latina.
Além disso, foi feita uma etapa na European Molecular Biology Laboratory, na Alemanha, para procedimento adicional de definição de estrutura, que é absolutamente inédito no país. Este procedimento permite a formação de fatias celulares estreitas fundamentais para a resolução de estruturas dentro das células. A técnica, conhecida como in situ Cryo-ET está no ápice de seu crescimento na pesquisa acadêmica mundial e apenas recentemente sendo adquirida por algumas instituições brasileiras. “Possuímos já um amplo know-how para as análises. No momento, estamos implantando a técnica de Cryo-ET para estudo de ultraestrutura celular e esperamos, em breve, poder contar também com a infraestrutura necessária para as análises in situ por Cryo-ET”, afirma Rodrigo Portugal, coordenador do Laboratório de Criomicroscopia Eletrônica do LNNano.
O conjunto de estratégias permitiu aos pesquisadores determinar que a glutaminase está presente em formato de filamentos também em seu ambiente natural de ação, ou seja, de dentro da mitocôndria em uma cultura de células. A vantagem se dá porque a dinâmica de ação de substâncias em um tubo de ensaio é diferente das condições normais fisiológicas da célula. Essa diferença impacta a qualidade de deduções e conclusões científicas, como tantos estudos na área da saúde, com ótimos resultados laboratoriais, porém com resultados clínicos frustrados, já demonstraram. Quanto mais perto os experimentos estão do funcionamento holístico do organismo, melhor.
A pesquisa também concluiu que os filamentos de glutaminase podem ser formados em diferentes tipos celulares, mas apenas em condições específicas, e que essa capacidade de formação se mantém no câncer, por exemplo. Perceberam que essas estruturas mudam a morfologia das mitocôndrias, tornando-as mais compridas, e algumas funções, tornando-as capazes de sobreviver e resistir melhor à “limpeza” que a célula promove em suas mitocôndrias de tempos em tempos.
O ganho de uma função da enzima na mitocôndria, por conta de uma organização estrutural de maior ordem, para além do papel enzimático, é algo inesperado pela literatura científica. Adamoski chama a atenção para o fato de que há muito ainda a ser descoberto. “É fato agora que os filamentos mudam a morfologia da mitocôndria. Mas daí a saber se isso é algo positivo ou prejudicial ao organismo, e em quais órgãos estão, são alguns dos objetivos futuros do grupo. Impressiona porque até hoje a gente não compreende na totalidade como a mitocôndria, tão importante no funcionamento de todos os nossos órgãos, funciona dentro da célula”, reflete.
O grupo de pesquisa supõe ainda que uma série de outras enzimas possam ter uma capacidade parecida, o que está sendo explorado em projeto temático financiado pela FAPESP e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), ao qual o CNPEM é vinculado.
Sobre o CNPEM
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